segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O GRANDE SURRUPIADOR (Gustavo Morais Barros)



À memória de Afonso Henriques de Lima Barreto

Em algum lugar da cidade, onde ladram os cães e estouram os fogos, o grande surrupiador marca presença num pomposo rito de conquista de votos. É madrugada e a brisa gélida vem roçar as folhas das árvores e proporcionar à multidão uma deliciosa sensação de arrepio percorrendo a espinha. Homens, mulheres e crianças se acotovelam e se apertam menos pelo frio do que pelo afã de melhor enxergar o homem do palanque.
O ritual teve início. O grande surrupiador articulou as primeiras palavras num tom firme e decidido, com aquela entonação típica de quando se quer impressionar ou persuadir alguém. Contudo, ouvidos perscrutadores poderiam detectar um leve traço de fastio em sua eloqüência, como se se aborrecesse gradativamente com as próprias palavras. De fato, para ouvintes mais atentos, seu discurso traía um quê de mecânico, preconcebido e decorado sem qualquer paixão, sem qualquer entendimento do que proferia, tal com um ator de terceira classe: aquele que apenas memoriza bem o texto e nada mais.
O homem pronunciava úmida e grandiloqüentemente suas frases enquanto falava do que pensava em fazer a respeito daquelas mazelas que todos nós, brasileiros, bem conhecemos. Sua oratória era auxiliada por uma presença intrigante: ao seu lado, trajando um vestido escarlate, estava uma estonteante mulher. Tinha sedosos cabelos loiros que caíam sobre a face branca, constituída de lábios carnudos e um nariz aparentemente perfeito além de olhos de um azul lascivo; melíflua era sua voz que parecia fascinar a multidão, a mulher se chamava P... ; mas, coisa estranha! Quem se detivesse para contemplá-la durante um bom tempo, notaria que aquela beleza era fugaz, conseguida depois de muita pintura e produção, era na verdade uma pseudobeleza, a beleza do diabo: os olhos azuis logo se tornariam baços e a face rapidamente se cobriria de rugas.
De súbito, das sombras de uma rua parcamente iluminada, próxima ao comício, surgiu uma figura curvada que caminhava com passos lentos, porém resolutos. Após algum tempo, a silhueta chegou às últimas fileiras da massa humana compacta que assistia ao comício. Era uma senhora de idade avançada, altura mediana e dorso levemente curvo; apesar a expressão de resignação típica das pessoas idosas, a velha trazia em seu franco rosto um ar jovial, graças aos seus traços bem definidos e aos seus olhos mansos. Tudo isso conferia a ela um aspecto de grande dignidade e benevolência e, vendo-a, se podia deduzir que havia sido muito bela quando jovem; estava vestida toda de branco, “empacotada” devido ao frio. Sua aparência apesar de grave era modesta.
Com seu corpo esguio e por causa de sua condição, a velha senhora conseguiu passagem pela multidão ficando muito próxima do palanque. Nunca a tinham visto antes nas redondezas. A idosa mulher escutava o discurso com ar contrafeito e preparava-se para lançar uma frase de protesto quando, sobre ela, os olhos da mulher de escarlate se pousaram. Esta teve um sobressalto e começou a falar arrastada e voluptuosamente, num tom de progressiva lascívia. A senhora de branco tentava se fazer ouvir, mas quanto mais ela insistia, mais doce, sedutora e atraente se tornava a voz da mulher do palanque. Observando a sua volta, a idosa compreendeu que as pessoas estavam quase em estado de transe, dir-se-ia semizumbis, e que seus esforços seriam inúteis. Curiosa terra em que seus filhos não se interessam pelo que os mais velhos têm a dizer! Em outros lugares as pessoas ouviam avidamente sua sábia loquacidade, recebiam-na alegremente aonde quer que fosse, mas aqui fora vencida por uma mulher de aspecto temerário! A velhinha baixou tristemente os olhos e se retirou; ainda estava no meio da multidão quando o grande surrupiador proferiu:
- Eu lhes prometo: o betume chegará. A poeira não mais os afligirá! – Disse isso não sem muitas gotas de saliva lançadas no ar. Ao que a multidão, imersa numa espécie de êxtase coletivo, replicou em estrondoso uníssono:
- “Louvado seja nosso homem de ação
Que cospe em nossa fronte e faz sumir o poeirão!”
A senhora de branco já havia transposto o mar de gente quando, pouco depois, foi tocada na perna direita: era uma criança que devia ter uns sete anos. Esta lhe perguntou seu nome.
- C... P... , meu anjo. – Foi a resposta.
A criança pediu à senhora que se abaixasse. Feito isto, a pequenina disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e lhe beijou a face, depois de tê-la abraçado. Pouco depois, a velha tinha os olhos cheios de lágrimas enquanto observava a criança se misturar à massa; segundos mais tarde, a velha senhora desapareceu nas trevas da madrugada.