domingo, 9 de novembro de 2008

O VELHO (Chico Buarque)


O velho sem conselhos
De joelhosDe partidaCarrega com certeza
Todo o peso
Da sua vidaEntão eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardouDo carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agoraO que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixarNadaSó a caminhadaLonga, pra nenhum lugar

O velho de partidaDeixa a vidaSem saudadesSem dívidas, sem saldo
Sem rival
Ou amizadeEntão eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
E diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixarNadaE eu vejo a triste estradaOnde um dia eu vou parar

O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não se sabe pra que veio
Foi passeio
Foi Passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vãoE eu lhe peço perdãoMas não vou lastimar

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O GRANDE SURRUPIADOR (Gustavo Morais Barros)



À memória de Afonso Henriques de Lima Barreto

Em algum lugar da cidade, onde ladram os cães e estouram os fogos, o grande surrupiador marca presença num pomposo rito de conquista de votos. É madrugada e a brisa gélida vem roçar as folhas das árvores e proporcionar à multidão uma deliciosa sensação de arrepio percorrendo a espinha. Homens, mulheres e crianças se acotovelam e se apertam menos pelo frio do que pelo afã de melhor enxergar o homem do palanque.
O ritual teve início. O grande surrupiador articulou as primeiras palavras num tom firme e decidido, com aquela entonação típica de quando se quer impressionar ou persuadir alguém. Contudo, ouvidos perscrutadores poderiam detectar um leve traço de fastio em sua eloqüência, como se se aborrecesse gradativamente com as próprias palavras. De fato, para ouvintes mais atentos, seu discurso traía um quê de mecânico, preconcebido e decorado sem qualquer paixão, sem qualquer entendimento do que proferia, tal com um ator de terceira classe: aquele que apenas memoriza bem o texto e nada mais.
O homem pronunciava úmida e grandiloqüentemente suas frases enquanto falava do que pensava em fazer a respeito daquelas mazelas que todos nós, brasileiros, bem conhecemos. Sua oratória era auxiliada por uma presença intrigante: ao seu lado, trajando um vestido escarlate, estava uma estonteante mulher. Tinha sedosos cabelos loiros que caíam sobre a face branca, constituída de lábios carnudos e um nariz aparentemente perfeito além de olhos de um azul lascivo; melíflua era sua voz que parecia fascinar a multidão, a mulher se chamava P... ; mas, coisa estranha! Quem se detivesse para contemplá-la durante um bom tempo, notaria que aquela beleza era fugaz, conseguida depois de muita pintura e produção, era na verdade uma pseudobeleza, a beleza do diabo: os olhos azuis logo se tornariam baços e a face rapidamente se cobriria de rugas.
De súbito, das sombras de uma rua parcamente iluminada, próxima ao comício, surgiu uma figura curvada que caminhava com passos lentos, porém resolutos. Após algum tempo, a silhueta chegou às últimas fileiras da massa humana compacta que assistia ao comício. Era uma senhora de idade avançada, altura mediana e dorso levemente curvo; apesar a expressão de resignação típica das pessoas idosas, a velha trazia em seu franco rosto um ar jovial, graças aos seus traços bem definidos e aos seus olhos mansos. Tudo isso conferia a ela um aspecto de grande dignidade e benevolência e, vendo-a, se podia deduzir que havia sido muito bela quando jovem; estava vestida toda de branco, “empacotada” devido ao frio. Sua aparência apesar de grave era modesta.
Com seu corpo esguio e por causa de sua condição, a velha senhora conseguiu passagem pela multidão ficando muito próxima do palanque. Nunca a tinham visto antes nas redondezas. A idosa mulher escutava o discurso com ar contrafeito e preparava-se para lançar uma frase de protesto quando, sobre ela, os olhos da mulher de escarlate se pousaram. Esta teve um sobressalto e começou a falar arrastada e voluptuosamente, num tom de progressiva lascívia. A senhora de branco tentava se fazer ouvir, mas quanto mais ela insistia, mais doce, sedutora e atraente se tornava a voz da mulher do palanque. Observando a sua volta, a idosa compreendeu que as pessoas estavam quase em estado de transe, dir-se-ia semizumbis, e que seus esforços seriam inúteis. Curiosa terra em que seus filhos não se interessam pelo que os mais velhos têm a dizer! Em outros lugares as pessoas ouviam avidamente sua sábia loquacidade, recebiam-na alegremente aonde quer que fosse, mas aqui fora vencida por uma mulher de aspecto temerário! A velhinha baixou tristemente os olhos e se retirou; ainda estava no meio da multidão quando o grande surrupiador proferiu:
- Eu lhes prometo: o betume chegará. A poeira não mais os afligirá! – Disse isso não sem muitas gotas de saliva lançadas no ar. Ao que a multidão, imersa numa espécie de êxtase coletivo, replicou em estrondoso uníssono:
- “Louvado seja nosso homem de ação
Que cospe em nossa fronte e faz sumir o poeirão!”
A senhora de branco já havia transposto o mar de gente quando, pouco depois, foi tocada na perna direita: era uma criança que devia ter uns sete anos. Esta lhe perguntou seu nome.
- C... P... , meu anjo. – Foi a resposta.
A criança pediu à senhora que se abaixasse. Feito isto, a pequenina disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e lhe beijou a face, depois de tê-la abraçado. Pouco depois, a velha tinha os olhos cheios de lágrimas enquanto observava a criança se misturar à massa; segundos mais tarde, a velha senhora desapareceu nas trevas da madrugada.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A CHUVA (Jorge Luis Borges - poeta argentino)


A tarde bruscamente se aclarou,
porque já cai a chuva minuciosa.
Cai e caiu. A chuva é só uma coisa
que o passado por certo freqüentou.

Quem a escuta cair já recobrou
o tempo em que a fortuna venturosa
uma flor lhe mostrou chamada rosa
e a cor bizarra do que cor tomou.

Esta chuva que treme sobre os vidros
alegrará nuns arrabaldes idos
as negras uvas de uma parra em horto

que não existe mais. A umedecida
tarde me traz a voz, a voz querida
de meu pai que retorna e não é morto.

OS AMANTES (Julio Cortázar - poeta argentino)


Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

MULHERES (Pablo Neruda)


Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam “não” como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversário ou um novo casamento.

SONETO AUGUSTINIANO (Rafael Nunes)


Meu verso é sangue.
- Manuel Bandeira-


A Wildes Dias


Por me deitar assim à sombra estreita
Da arvore doce que me colhe cauto,
Me embrulho com o abismo que espreita
A luz morta das trevas de basalto.

E como um rio pos a chuva revolto
Na rutilância ébria do meu peito,
Que se embriaga da margem, mesmo afeito,
Sobre as pedras do teu caminho incauto.

E no rigor da trova lauto escuro
Crio a dor como às águas o obscuro
Frente a um deus que no mar remoto incita...

Nos desvãos, no silêncio me procuro,
Nas suplicas do fosso, no verso impuro,
Baudelairiano é o ópio que em mim habita.

sábado, 24 de maio de 2008

HOMEM COMUM (Ferreira Gullar)


Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

INFERNO (Dante Alighieri)


CANTO I (trecho inicial)


No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que encontrei,
outros dados darei da minha sorte.

Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,

e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia.

Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;

e como náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.

(...)

CÍRCULO VICIOSO (Machado de Assis)


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
— “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

— “Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna à gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

— “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

— “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”

terça-feira, 6 de maio de 2008

DO AMANTE (Bertolt Brecht)




Ai, a carne é fraca, não tem discussão
E eu, que enfraqueci mulher de amigo
Evito o meu quarto, dormir não consigo
Vejo-me à noite: atento a qualquer som!

E isso advém de o seu quarto afinal
Ser contíguo ao meu. O que me consome
É que eu ouço tudo, quando ele a come
E se não ouço, penso: é pior o mal!

Se já tarde os três bebemos um copito
E eu noto que o meu amigo não fuma
E, quando a mira, põe olhos em bico

Encho o copo dela a deitar por fora
E obrigo-a a beber, se não colabora,
P'ra ela à noite não dar por nenhuma.

sábado, 22 de março de 2008

BEM NO FUNDO (Paulo Leminski)


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

O PASSADO (Cora Coralina)


Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.

ERÓTICA (Carlos Queirós - poeta português)


A noite descia
como um cortinado
sobre a erva fria
do campo orvalhado.
e eu (fauno em vertigem)
a rondar em torno
do teu corpo virgem,
sonolento e morno,
pensava no lasso
tombar do desejo;
em breve, o cansaço
do último beijo...
E no modo como
sentir menos fácil
o maduro pomo
do teu corpo grácil:
ou sem lhe tocar
– de tanto o querer! –
ficar a olhar,
até o esquecer,
ou como por entre
reflexos do lago,
roçar-lhe no ventre
luarento afago;
perpassando os meus
nos teus lábios húmidos,
meu peito nos teus
brancos
seios
túmidos...

O REI DOS DESALMADOS (Rafael Nunes)


"Terreur du libertin, espoir du fol ermite;
Le Ciel! couvercle noir de la grande marmite
Où bout l'imperceptible et vaste hummanité."
Charles Baudelaire


Esqualido um poema nasce
Sobre teus ombros, ancourado
Nas águas sepulcrais de tua face,
Entre os lençóis da cama ao lado.

Dorme o lirismo ante o sonho frio,
Eterno, infindo, ébrio, tácito
Por entre as vozes do martírio,
Por entre as barbas de Heráclito.

Eufêmico engole a dor da existencia
Grita, chora, goza e ri
Mata a matéria, a ciência
Asfixia o vento e não sorri.

Vomita feito puta na esquina,
Defeca na rua a luz do dia,
Ignora a plutocracia fina,
Quer o grotesco, quer a melancolia.

Consome Nietzsche e Baudelaire
E rasga o jornal de amanhã
Lúcido, esquarteja a moral cristã
É o sim e o não, é o que não é.

E ante a voz do fogo oculto
Na ternura e no insulto
É a loucura sobre os céus,
É o horror defronte Deus.

E no plácido abismo de espíritos vãos
É cuspe pálido, drama cômico
Escarro sangue por sobre as mãos,
É amargura, espasmo irônico.

Vagueia súbito na avenida escura
Na intima sugeira humana
Vê na escuridão a beleza pura,
Vê no andrajo a última chama.

E no ventre de tua mãe nua
No líquido de teus pais bêbados,
Vive no verso em que flutua,
Eis, o rei dos desalmados.

"A PEDRA NO CAMINHO"(Rui Knopfli - Moçambique)


"Toma essa pedra em tua mão,

toma esse poliedro imperfeito,

duro e poeirento. Aperta em

tua mão esse objecto frio,

redondo aqui, acolá acerado.

redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito

bruto. Uma pedra, uma arma

em tua mão. Uma coisa inócua,

todavia poderosa, tensa,

em sua coesão molecular,

em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida

ensolarada, tu és um homem

um pouco diferente. Ao meio-dia

na avenida tu és um homem

segurando uma pedra. Segurando-a

com amor e raiva."

ERA UM CAMINHO (Mário Quintana)


Era um caminho que de tão velho, minha filha,

já nem mais sabia aonde ia...

Era um caminho

velhinho,

perdido...

Não havia traços

de passos no dia

em que por acaso o descobri:

pedras e urzes iam cobrindo tudo.

O caminho agonizava, morria

sozinho...

Eu vi...

Porque são os passos que fazem os caminhos!

domingo, 16 de março de 2008

GRITO DE ALMA (Rui de Noronha - Moçambique )


Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva e arrasta
inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, Amor, nessa altivez madrasta,
ou gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, de uma crueza vasta,
quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe,
na fulgurante luz do teu olhar tão doce,
a mágoa minha, eterna, a minha eterna dor.

Vai, segue o teu destino! A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho de tua raça,
que eu ficarei cantando o nosso eterno amor.

MENTIRA (Helena Verdugo Afonso - poetisa angolana)


Acreditei na vida, e foi assim
que, cheia de alegria e de esperança,
deixei alimentar dentro de mim
um amor puro e ledo, de criança.

Pensei ter alcançado então, o fim
por mim tão desejado, e, sem tardança,
senti-me venturosa, escrava enfim,
julgando meu o que ninguém alcança.

Mas, ai! Tu só mentiste. e foi em vão
que tentei afogar no coração
o pranto desta mágoa que delira..

O teu amor, que tanto ambicionei
e a que tão loucamente me entreguei,
não passava, afinal, de uma mentira!...

NOITE (Alda Lara - poetisa angolana)


Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Há cantos de tungurúluas pelos ares!...
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e esqueceram
as histórias...
Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...
É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...

Os meninos-brancos... esqueceram!...

DE VISITA AO LUGAR DE NASCIMENTO (Gregory Corso)


De pé na luz fraca da rua escura
olho para minha janela no alto foi lá que nasci.
As luzes estão ecesas; outras pessoas se movimentam ali.
Vestido com capa de chuva, cigarro na boca,
chapéu caído nos olhos, a mão na arma.
Atravesso a rua e entro no prédio.
As latas de lixo não pararam de cheirar mal.
Subo o primeiro lance de escadas: Lóbulos-Sujos
me ameaça com sua faca...
Eu lhe despejo uma torrente de relógios esquecidos.

quarta-feira, 5 de março de 2008

ARTE POÉTICA (Paul Verlaine)


Antes de qualquer coisa, música
e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.
E preciso também que não vás nunca
escolher tuas palavras em ambigüidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso se junta ao Preciso.
São belos olhos atrás dos véus,
é o grande dia trêmulo de meio-dia,
é, através do céu morno de outono,
o azul desordenado das claras estrelas!
Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.
Foge para longe da Piada assassina,
do Espírito cruel e do Riso impuro
que fazem chorar os olhos do Azul
e todo esse alho de baixa cozinha!
Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começaste,
em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?
Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?
Ainda e sempre, música!
Que teu verso seja um bom acontecimento
esparso no vento crispado da manhã
que vai florindo a hortelã e o timo...
E tudo o mais é só literatura.

PALAVRAS (Sylvia Plath)


Golpes
De machado que fazem soar a madeira,
e os ecos!
Ecos partem
Do centro como cavalos.

A seiva
Jorra como lágrimas, como a
água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido por ervas daninhas.
Anos depois as encontro
Na estrada —

Palavras secas e sem rumo,
Infatigável bater de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço estrelas fixas
Governam uma vida.

LOUCO (Junqueira Freire)


Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha;
Suas idéias não cabiam nele:
Seu corpo é que lutou contra a sua alma.
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo na verdade insano;
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater co'o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim - o espírito mais livre
Pode subir às regiões supremas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais portanto - louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

SONETO A LIBERDADE (Oscar Wilde)


Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,
Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Refletem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.

Minha alma circunspeta gosta de teus gritos
Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apóio ao menos parcialmente.

DESEJO (Victor Hugo)


Desejo primeiro, que você ame,
e que amando, também seja amado.

E que se não for, seja breve em esquecer
e esquecendo não guarde mágoa.

Desejo também que tenha amigos,
que mesmo maus e inconseqüentes,
sejam corajosos e fiéis,
e que em pelo menos num deles
você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim,
desejo ainda que você tenha inimigos;
Nem muitos, nem poucos,
e que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo ainda que você seja tolerante;
não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente,
e que fazendo bom uso dessa tolerância,
você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você sendo jovem,
não amadureça depressa demais
e sendo maduro, não insista em rejuvenescer,
e que sendo velho não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo também, que você plante uma semente
por mais minúscula que seja,
e que acompanhe o seu crescimento
para que você saiba de quantas muitas vidas
é feita uma árvore.

Desejo por fim que você sendo um homem,
tenha uma boa mulher,
e que sendo uma mulher,
tenha um bom homem
e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte,
e que quando estiverem exaustos e sorridentes,
ainda haja amor para recomeçar.

E se tudo isso acontecer,
não tenho mais nada a desejar.

NÃO ME FECHEM AS PORTAS (Walt Whitman)


Não me fechem as portas, orgulhosas
bibliotecas, pois justamente o que estava faltando
em suas prateleiras apinhadas,
é o que venho trazer
- mal acabando de sair da guerra,
um livro que escrevi:
pelas palavras do meu livro, nada;
pelas intenções, tudo!
Um livro à margem,
sem nada a ver com os restantes,
e que não pode ser sentido só
com o intelecto.
Vocês, porém, com seus silêncios latentes,
a cada página hão de estremecer
maravilhadas.

Isto é o toque de milhares de cornetas, o choro das flautas
e o bater dos ferrinhos.

Eu não toco uma marcha só para os vitoriosos... toco grandes
marchas para os conquistados e derrotados.

Já ouviram dizer, foi bom ter ganho o dia?
Também digo, é bom perder... perdem-se batalhas
com o mesmo espírito com que se ganham.

Ouço tambores triunfantes, aos mortos... Abandono-me à
música alegre que se toca em sua honra,
Vivas, em honra dos que falharam, e àqueles cujos vasos de guerra
cairam nos mares, e aos que se afundaram eles próprios,
E a todos os generais que perderam combates, e a todos os
heróis vindouros, e ao sem número de heróis iguais
aos grandes heróis conhecidos.

O VOSSO TANQUE GENERAL, É UM CARRO FORTE (Bertold Brecht)


Derruba uma floresta esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
- Precisa de um motorista
O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
- Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito-
Sabe pensar

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

NA CADEIA (Camilo Pessanha)


na cadeia os bandidos presos!
o seu ar de contemplativos!
que é das feras de olhos acesos?!
pobres dos seus olhos cativos

passeiam mudos entre as grades,
parecem peixes num aquário.
- campo florido das saudades,
porque rebentas tumultuário?

serenos... serenos... serenos...
trouxe-os algemados a escolta.
- estranha taça de venenos
meu coração sempre em revolta.

coração, quietinho... quietinho...
porque te insurges e blasfemas?
pschiu... não batas... devagarinho...
olha os soldados, as algemas!

SEM TÍTULO (La Fontaine)


Amar, foder: uma união

De prazeres que não separo.

A volúpia e os prazeres são

O que a alma possui de mais raro.

Caralho, cona e corações

Juntam-se em doces efusões

Que os crentes censuram, os loucos.

Reflete nisso, oh minha amada:

Amar sem foder é bem pouco,

Foder sem amar não é nada.

IDADE DE SER FELIZ (Mário Quintana)


Existe somente uma idade para a gente ser feliz,somente uma época na vida de cada pessoa em que é possível sonhar e fazer planos e ter energia bastante para realiza-los a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encontrar com a vida e viver apaixonadamente e desfrutar tudo com toda intensidade sem medo nem culpa de sentir prazer. Fases douradas em que a gente pode criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança e vestir-se com todas as cores e experimentar todos os sabores e entregar-se a todos os amores sem preconceito nem pudor.
Tempo de entusiasmo e coragem em que todo desafio é mais um convite à luta que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO, e quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na vida da gente chama-se PRESENTE e tem a duração do instante que passa.

NEM TUDO É FÁCIL (Cecília Meireles)


É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste.
É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada
É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre.
É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia.
É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua.
É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo.
É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar.
É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo.
Se você errou, peça desculpas...
É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o...
É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Se você sente algo, diga...
É difícil se abrir? Mas quem disse que é fácil encontrar
alguém que queira escutar?
Se alguém reclama de você, ouça...
É difícil ouvir certas coisas? Mas quem disse que é fácil ouvir você?
Se alguém te ama, ame-o...
É difícil entregar-se? Mas quem disse que é fácil ser feliz?
Nem tudo é fácil na vida...Mas, com certeza, nada é impossível
Precisamos acreditar, ter fé e lutar
para que não apenas sonhemos, Mas também tornemos todos esses desejos,
realidade!!!

OS POBRES (Olavo Bilac)


Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receieis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão . . .

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

DANÇARINA ESPANHOLA (Rainer Maria Rilke)


Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

VENCEDOR (Augusto dos Anjos)


Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

CANÇÃO DO VIOLEIRO (Castro Alves)


Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
Meu coração 'stá deserto,
'Stá deserto o mundo inteiro.
Quem viu a minha senhora
Dona do meu coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

Ela foi-se ao pôr da tarde
Como as gaivotas do rio.
Como os orvalhos que descem
Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
Mais triste é meu coração.

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

E eu disse: a senhora volta
Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores,
Foi o tempo, a flor desmaia.
Colhereira, que além voas,
Onde está meu coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

Não quero mais esta vida,
Não quero mais esta terra.
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra.
Ai! triste que eu sou escravo!
Que vale ter coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

HORIZONTE (Fernando Pessoa)


Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidéreo
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da verdade.

BLUSA FÁTUA (Vladímir Maiakóvski)


Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.

Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"

Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!

Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!

CANTIGA PARA NÃO MORRER (Ferreira Gullar)


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

SONHA ALONSO QUIJANO (Jorge Luis Borges)



Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.

NO MEU OFÍCIO OU ARTE AMARGA (Dylan Thomas)



No meu ofício ou arte amarga
Que à noite tarda é exercido
Quando alucina só a lua
E dormem lassos os amantes
Com as dores todas entre os braços,
É que trabalho à luz cantante
Não pela glória ou pelo pão,
Desfile ou feira de fascínios
Por sobre palcos de marfim,
Mas pela paga mais afim
De seus secretos corações!

Não para alguém altivo à parte
Da lua irada é que eu escrevo
Os respingados destas páginas
Nem pelos mortos presumidos
Cheios de salmo e rouxinóis.
Mas para amantes cujos braços
Têm os cansaços das idades
Que não me dão louvor nem paga
Nem prezam meu ofício ou arte.


IN MY CRAFT OR SULLEN ART

In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labor by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart.

Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages
Nor for the towering dead
With their nightingales and psalms
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.

A CAPTURA E A MORTE (Federico García Lorca)




Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde.
O vento arrebatou os algodões
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já pelejam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde.
E uma coxa por um chifre destruída
às cinco horas da tarde.
Os sons já começaram do bordão
às cinco horas da tarde.
As campanas de arsênico e a fumaça
às cinco horas da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro todo coração ao alto
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando de iodo se cobriu a praça
às cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde.
Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
às cinco horas da tarde.
Por sua frente o touro já mugia
às cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
A gangrena de longe já se acerca
às cinco horas da tarde.
Trompa de lis pelas virilhas verdes
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!

VULGÍVAGA (Manuel Bandeira)



Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!

Não sei entre que astutos dedos
Deixei a rosa da inocência.
Antes da minha pubescência
Sabia todos os segredos...

Fui de um... Fui de outro... Este era médico...
Um, poeta... Outro, nem sei mais!
Tive em meu leito enciclopédico
Todas as artes liberais.

Aos velhos dou o meu engulho.
Aos férvidos, o que os esfrie.
A artistas, a coquetterie
Que inspira... E aos tímidos — o orgulho.

Estes, caço-os e depeno-os:
A canga fez-se para o boi...
Meu claro ventre nunca foi
De sonhadores e de ingênuos!

E todavia se o primeiro
Que encontro, fere toda a lira,
Amanso. Tudo se me tira.
Dou tudo. E mesmo... dou dinheiro...

Se bate, então como estremeço!
Oh, a volúpia da pancada!
Dar-me entre lágrimas, quebrada
Do seu colérico arremesso...

E o cio atroz se me não leva
A valhacoutos de canalhas,
É porque temo pela treva
O fio fino das navalhas...

Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!

EMBRIAGUEM-SE (Charles Baudelaire)


É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

SAUDADE (Pablo Neruda)


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas a amada já...
Saudade é amar um passado
que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe
o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudade,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.

Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.

Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.

Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.

AMBICIOSA (Florbela Espanca)


Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O voo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minh'alma é como uma pedra funerária
Erguida na montanha solitária,
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor dum Deus!...

TENHO FRIO E ARDO EM FEBRE (Olavo Bilac)


"E tremo à mezza state, ardendo inverno"
Petrarca

Tenho frio e ardo em febre!
O amor me acalma e endouda! O amor me eleva e abate!
Quem há que os laços, que me prendem, quebre?
Que singular, que desigual combate!
Não sei que ervada flecha
Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito,
Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha
Abriu, por onde o amor entrou meu peito.

O amor me entrou tão cauto
O incauto coração, que eu nem cuidei que estava,
Ao recebê-lo, recebendo o arauto
Desta loucura desvairada e brava.

Entrou. E, apenas dentro,
Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno...
E hoje... ai de mim!, que dentro em mim concentro
Dores e gostos num lutar eterno!

O amor, Senhora, vede:
Prendeu-me. Em vão me estorço, e me debato, e grito;
Em vão me agito na apertada rede...
Mais me embaraço quanto mais me agito!

Falta-me o senso: a esmo,
Como um cego, a tatear, busco nem sei que porto:
E ando tão diferente de mim mesmo,
Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.

Sei que entre as nuvens paira
Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra;
Sei que tudo me alegra e me desvaira,
E a paz desfruto, suportando a guerra.

E assim peno e assim vivo:
Que diverso querer! Que diversa vontade!
Se estou livre, desejo estar cativo;
Se cativo, desejo a liberdade!

E assim vivo, e assim peno:
Tenho a boca a sorrir e os olhos cheios de água;
E acho o néctar num cálix de veneno,
A chorar de prazer e a rir de mágoa.

Infinda mágoa! Infindo
Prazer! Pranto gostoso e sorrisos convulsos!
Ah! Como dói assim viver, sentindo
Asas nos ombros e grilhões nos pulsos!

ESPELHO (Mário Quintana)


Por acaso, surpreendo-me no espelho:

Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu?

(...) Parece meu velho pai - que já morreu!

(...)Nosso olhar duro interroga:

"O que fizeste de mim?"

Eu pai?

Tu é que me invadiste.Lentamente, ruga a ruga...

Que importa!Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre

E os teus planos enfim lá se foram por terra,

Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!

Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."