sábado, 22 de março de 2008

BEM NO FUNDO (Paulo Leminski)


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

O PASSADO (Cora Coralina)


Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.

ERÓTICA (Carlos Queirós - poeta português)


A noite descia
como um cortinado
sobre a erva fria
do campo orvalhado.
e eu (fauno em vertigem)
a rondar em torno
do teu corpo virgem,
sonolento e morno,
pensava no lasso
tombar do desejo;
em breve, o cansaço
do último beijo...
E no modo como
sentir menos fácil
o maduro pomo
do teu corpo grácil:
ou sem lhe tocar
– de tanto o querer! –
ficar a olhar,
até o esquecer,
ou como por entre
reflexos do lago,
roçar-lhe no ventre
luarento afago;
perpassando os meus
nos teus lábios húmidos,
meu peito nos teus
brancos
seios
túmidos...

O REI DOS DESALMADOS (Rafael Nunes)


"Terreur du libertin, espoir du fol ermite;
Le Ciel! couvercle noir de la grande marmite
Où bout l'imperceptible et vaste hummanité."
Charles Baudelaire


Esqualido um poema nasce
Sobre teus ombros, ancourado
Nas águas sepulcrais de tua face,
Entre os lençóis da cama ao lado.

Dorme o lirismo ante o sonho frio,
Eterno, infindo, ébrio, tácito
Por entre as vozes do martírio,
Por entre as barbas de Heráclito.

Eufêmico engole a dor da existencia
Grita, chora, goza e ri
Mata a matéria, a ciência
Asfixia o vento e não sorri.

Vomita feito puta na esquina,
Defeca na rua a luz do dia,
Ignora a plutocracia fina,
Quer o grotesco, quer a melancolia.

Consome Nietzsche e Baudelaire
E rasga o jornal de amanhã
Lúcido, esquarteja a moral cristã
É o sim e o não, é o que não é.

E ante a voz do fogo oculto
Na ternura e no insulto
É a loucura sobre os céus,
É o horror defronte Deus.

E no plácido abismo de espíritos vãos
É cuspe pálido, drama cômico
Escarro sangue por sobre as mãos,
É amargura, espasmo irônico.

Vagueia súbito na avenida escura
Na intima sugeira humana
Vê na escuridão a beleza pura,
Vê no andrajo a última chama.

E no ventre de tua mãe nua
No líquido de teus pais bêbados,
Vive no verso em que flutua,
Eis, o rei dos desalmados.

"A PEDRA NO CAMINHO"(Rui Knopfli - Moçambique)


"Toma essa pedra em tua mão,

toma esse poliedro imperfeito,

duro e poeirento. Aperta em

tua mão esse objecto frio,

redondo aqui, acolá acerado.

redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito

bruto. Uma pedra, uma arma

em tua mão. Uma coisa inócua,

todavia poderosa, tensa,

em sua coesão molecular,

em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida

ensolarada, tu és um homem

um pouco diferente. Ao meio-dia

na avenida tu és um homem

segurando uma pedra. Segurando-a

com amor e raiva."

ERA UM CAMINHO (Mário Quintana)


Era um caminho que de tão velho, minha filha,

já nem mais sabia aonde ia...

Era um caminho

velhinho,

perdido...

Não havia traços

de passos no dia

em que por acaso o descobri:

pedras e urzes iam cobrindo tudo.

O caminho agonizava, morria

sozinho...

Eu vi...

Porque são os passos que fazem os caminhos!

domingo, 16 de março de 2008

GRITO DE ALMA (Rui de Noronha - Moçambique )


Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva e arrasta
inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, Amor, nessa altivez madrasta,
ou gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, de uma crueza vasta,
quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe,
na fulgurante luz do teu olhar tão doce,
a mágoa minha, eterna, a minha eterna dor.

Vai, segue o teu destino! A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho de tua raça,
que eu ficarei cantando o nosso eterno amor.

MENTIRA (Helena Verdugo Afonso - poetisa angolana)


Acreditei na vida, e foi assim
que, cheia de alegria e de esperança,
deixei alimentar dentro de mim
um amor puro e ledo, de criança.

Pensei ter alcançado então, o fim
por mim tão desejado, e, sem tardança,
senti-me venturosa, escrava enfim,
julgando meu o que ninguém alcança.

Mas, ai! Tu só mentiste. e foi em vão
que tentei afogar no coração
o pranto desta mágoa que delira..

O teu amor, que tanto ambicionei
e a que tão loucamente me entreguei,
não passava, afinal, de uma mentira!...

NOITE (Alda Lara - poetisa angolana)


Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Há cantos de tungurúluas pelos ares!...
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e esqueceram
as histórias...
Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...
É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...

Os meninos-brancos... esqueceram!...

DE VISITA AO LUGAR DE NASCIMENTO (Gregory Corso)


De pé na luz fraca da rua escura
olho para minha janela no alto foi lá que nasci.
As luzes estão ecesas; outras pessoas se movimentam ali.
Vestido com capa de chuva, cigarro na boca,
chapéu caído nos olhos, a mão na arma.
Atravesso a rua e entro no prédio.
As latas de lixo não pararam de cheirar mal.
Subo o primeiro lance de escadas: Lóbulos-Sujos
me ameaça com sua faca...
Eu lhe despejo uma torrente de relógios esquecidos.

quarta-feira, 5 de março de 2008

ARTE POÉTICA (Paul Verlaine)


Antes de qualquer coisa, música
e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.
E preciso também que não vás nunca
escolher tuas palavras em ambigüidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso se junta ao Preciso.
São belos olhos atrás dos véus,
é o grande dia trêmulo de meio-dia,
é, através do céu morno de outono,
o azul desordenado das claras estrelas!
Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.
Foge para longe da Piada assassina,
do Espírito cruel e do Riso impuro
que fazem chorar os olhos do Azul
e todo esse alho de baixa cozinha!
Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começaste,
em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?
Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?
Ainda e sempre, música!
Que teu verso seja um bom acontecimento
esparso no vento crispado da manhã
que vai florindo a hortelã e o timo...
E tudo o mais é só literatura.

PALAVRAS (Sylvia Plath)


Golpes
De machado que fazem soar a madeira,
e os ecos!
Ecos partem
Do centro como cavalos.

A seiva
Jorra como lágrimas, como a
água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido por ervas daninhas.
Anos depois as encontro
Na estrada —

Palavras secas e sem rumo,
Infatigável bater de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço estrelas fixas
Governam uma vida.

LOUCO (Junqueira Freire)


Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha;
Suas idéias não cabiam nele:
Seu corpo é que lutou contra a sua alma.
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo na verdade insano;
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater co'o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim - o espírito mais livre
Pode subir às regiões supremas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais portanto - louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

SONETO A LIBERDADE (Oscar Wilde)


Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,
Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Refletem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.

Minha alma circunspeta gosta de teus gritos
Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apóio ao menos parcialmente.

DESEJO (Victor Hugo)


Desejo primeiro, que você ame,
e que amando, também seja amado.

E que se não for, seja breve em esquecer
e esquecendo não guarde mágoa.

Desejo também que tenha amigos,
que mesmo maus e inconseqüentes,
sejam corajosos e fiéis,
e que em pelo menos num deles
você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim,
desejo ainda que você tenha inimigos;
Nem muitos, nem poucos,
e que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo ainda que você seja tolerante;
não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente,
e que fazendo bom uso dessa tolerância,
você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você sendo jovem,
não amadureça depressa demais
e sendo maduro, não insista em rejuvenescer,
e que sendo velho não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo também, que você plante uma semente
por mais minúscula que seja,
e que acompanhe o seu crescimento
para que você saiba de quantas muitas vidas
é feita uma árvore.

Desejo por fim que você sendo um homem,
tenha uma boa mulher,
e que sendo uma mulher,
tenha um bom homem
e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte,
e que quando estiverem exaustos e sorridentes,
ainda haja amor para recomeçar.

E se tudo isso acontecer,
não tenho mais nada a desejar.

NÃO ME FECHEM AS PORTAS (Walt Whitman)


Não me fechem as portas, orgulhosas
bibliotecas, pois justamente o que estava faltando
em suas prateleiras apinhadas,
é o que venho trazer
- mal acabando de sair da guerra,
um livro que escrevi:
pelas palavras do meu livro, nada;
pelas intenções, tudo!
Um livro à margem,
sem nada a ver com os restantes,
e que não pode ser sentido só
com o intelecto.
Vocês, porém, com seus silêncios latentes,
a cada página hão de estremecer
maravilhadas.

Isto é o toque de milhares de cornetas, o choro das flautas
e o bater dos ferrinhos.

Eu não toco uma marcha só para os vitoriosos... toco grandes
marchas para os conquistados e derrotados.

Já ouviram dizer, foi bom ter ganho o dia?
Também digo, é bom perder... perdem-se batalhas
com o mesmo espírito com que se ganham.

Ouço tambores triunfantes, aos mortos... Abandono-me à
música alegre que se toca em sua honra,
Vivas, em honra dos que falharam, e àqueles cujos vasos de guerra
cairam nos mares, e aos que se afundaram eles próprios,
E a todos os generais que perderam combates, e a todos os
heróis vindouros, e ao sem número de heróis iguais
aos grandes heróis conhecidos.

O VOSSO TANQUE GENERAL, É UM CARRO FORTE (Bertold Brecht)


Derruba uma floresta esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
- Precisa de um motorista
O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
- Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito-
Sabe pensar