sexta-feira, 29 de maio de 2009

UMA CRIATURA (Machado de Assis)




Sei de uma criatura antiga e formidável,


que a si mesma devora os membros e as entranhas,


com a sofreguidão da fome insaciável.




Habita juntamente os vales e as montanhas;


e no mar, que se rasga à maneira de abismo,


espreguiça-se toda em convulsões estranhas.




Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.


Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,


parece uma expansão de amor e de egoísmo.




Friamente contempla o desespero e o gozo,


gosta do colibri como gosta do verme,


e cinge ao coração o belo e o monstruoso.




Para ela, o chacal é como a rola inerme,


e caminha na terra imperturbável como,


pelo vasto areal, um vasto paquiderme.




Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,


vem a folha que, lento e lento, se desdobra,


depois a flor, depois o suspirar do pomo.




Pois essa criatura está em toda a obra,


cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.


E é nesse destruir que as suas forças dobra.




Ama de igual amor o poluto e o impoluto;


começa e recomeça uma perpétua lida,


e sorrindo obedece ao divino estatuto.


Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

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